sexta-feira, 15 de junho de 2018

O COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA


O aluno deverá utilizar o texto a seguir como fonte de consulta para a realização do Exercício Avaliativo 3, em 21/jun/2018.
                  
Texto extraído de: O Comitê de Bacia Hidrográfica: o que é e o que faz? / Agência Nacional de Águas. -- Brasília: SAG, 2011. 64 p. : il. -- (Cadernos de capacitação em recursos hídricos ; v.1)

Os conflitos pelo uso da água não surgiram hoje e são recorrentes em toda a história da humanidade; o que se modifica é a forma como as sociedades se organizam para enfrentá-los. A água doce é recurso vital para sobrevivência das civilizações e, em casos de escassez, constitui-se como fator limitante na implementação de atividades econômicas típicas das sociedades modernas.
A intensificação do uso da água, causada pela ampliação da produção de alimentos e demais bens de consumo, provocou problemas ambientais ameaçando, inclusive, sua conservação.
No Brasil, há alguns exemplos de como a falta de planejamento e gestão tem colocado em risco os usos múltiplos da água. O Rio Salitre, no estado da Bahia, afluente do Rio São Francisco, devido à intensificação da captação de água para atendimento a projetos de irrigação, em determinados períodos do ano, tem toda a sua vazão comprometida, exigindo uma derivação das águas do Rio São Francisco para atender outras demandas.
Outro exemplo é o Rio Tietê, em São Paulo. A partir da década de 1940, com a industrialização crescente da capital paulista e do seu entorno, acompanhada pelo aumento populacional, o rio sofreu um processo de degradação ambiental resultante do lançamento de efluentes domésticos e industriais.
Em São Paulo, há ainda o caso do Sistema Cantareira que abastece cerca de 9 milhões de pessoas por meio da transposição de águas das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí para a Região Metropolitana (RM) de São Paulo. O crescimento desordenado da metrópole paulista teve como consequência a necessidade de transposição de água de outras bacias, gerando conflito com as bacias doadoras. Em 2004, no processo de renovação da outorga de direito de uso do Sistema Cantareira, foram firmados acordos definindo regras de uso para as partes, metas de redução de perdas de água e medidas compensatórias para as bacias doadoras, tais como: implantação de sistemas de tratamento de esgotos e programas de racionalização do uso da água e educação ambiental.
Isso ocorreu após intensos debates entre as partes envolvidas: comitês das bacias doadora e receptora, órgãos gestores de recursos hídricos, Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que é o principal usuário das águas transpostas.
Já no Sul do Brasil, há o exemplo da Bacia do Rio Itajaí, região propensa a problemas de enchentes. Com a extinção do antigo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (Dnos), em 1990, a manutenção das estruturas de contenção de cheias foi gradativamente abandonada pelo poder público, fato que gerou a mobilização da sociedade local para resolução do problema. Tal mobilização culminou com a criação do Comitê de Bacia do Rio Itajaí.
Por falar em enchentes, essa questão está entre as mais urgentes da Bacia do Rio Doce pelas proporções que tem assumido, pelo rastro de problemas sociais que deixa e pela vulnerabilidade que a bacia apresenta a eventos críticos recorrentes, agravados ano após ano pelo desmatamento e pela ocupação indevida do solo, ações antrópicas que deflagram processos erosivos indesejáveis.
Voltando ao Nordeste, pode ser citado o caso do estado do Ceará, que tem quase todo o seu território em região semiárida e que depende de açudes para perenização de seus rios. Em 2001, diante de um cenário extremo de seca no Vale do Jaguaribe, houve a necessidade de adoção de um plano de racionamento de uso de água no setor de irrigação. O plano (construído em conjunto por diversos órgãos envolvidos com a gestão de recursos hídricos) estabeleceu mecanismos para enfrentar a escassez de água na bacia, com a introdução de compensações técnico-financeiras para incentivar a substituição da cultura do arroz por culturas de menor consumo de água e garantir esse insumo para abastecimento às populações. A experiência aumentou o nível de conscientização da sociedade para importância da gestão da água.
Diversos outros exemplos poderiam reforçar a necessidade de criação de arranjos institucionais que promovam o acordo entre os setores usuários com as políticas públicas e com as múltiplas visões da sociedade civil para a adequada tomada de decisão sobre o destino das águas – os comitês de bacia fazem parte desses arranjos. Para se entender melhor tal proposta, será feita, a seguir, a reconstituição do contexto e das forças que permitiram essa nova forma de organização para gestão das águas.

Há a necessidade de criação de arranjos institucionais que promovam o acordo entre os setores usuários com as políticas públicas e com as múltiplas visões da sociedade civil para adequada tomada de decisão sobre o destino das águas.

DIFERENÇA ENTRE COMITÊS DE BACIA E OUTRAS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO
As experiências de participação social na gestão pública brasileira tornaram-se mais frequentes a partir do fim da década de 1980 e, principalmente, na década de 1990 por conta do processo de redemocratização ocorrido no País. pioneiros na forma de atuação de um conselho de cunho governamental, pois incluiu representantes da sociedade civil na sua composição.
A Lei nº 6.938/1981, que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente e constitui o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), consolida esse processo de participação social na gestão ambiental quando cria o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), composto por membros dos Poderes Executivo e Legislativo, bem como por representantes da sociedade civil organizada.
A estratégia de inclusão de setores sociais em processos participativos de gestão pública pode ser considerada tanto uma conquista desses setores quanto alternativa de gestão mais eficiente (NOGUEIRA, 2005). De tal movimento resultou a criação de diversas estruturas institucionais que permitiram essa maior participação, sobretudo, após a Constituinte, quando foram criados diversos Conselhos de Políticas Públicas nas áreas de saúde, assistência social e, de forma mais recente, na área de meio ambiente.
Trata-se de espaços privilegiados de negociação entre os atores interessados em determinada política. O orçamento participativo, por exemplo, iniciado em 1989, em Porto Alegre, e em 1993, em Belo Horizonte, permitiu a participação direta dos moradores na definição de parte do orçamento municipal. Outro exemplo de participação direta são os Planos Diretores Municipais, hoje denominados Planos Participativos Diretores Urbanos (AVRITZER, 2008), que passam a ser elaborados a partir da década de 1990.
Os planos diretores são instrumentos de planejamento de uma cidade que tratam sobre a política de desenvolvimento, o ordenamento territorial e a expansão urbana.

COMITÊ DE BACIA: UMA NOVA FORMA DE PARTICIPAÇÃO
As diversas formas de participação são importantes para construção de uma sociedade democrática. Entretanto, algumas formas de participação são apenas consultivas, ou seja, funcionam como uma instância de consulta à sociedade podendo suas decisões ser, ou não, implementadas.
Eis a diferença: os comitês de bacia hidrográfica diferem de outras formas de participação previstas nas demais políticas públicas, pois têm como atribuição legal deliberar sobre a gestão da água fazendo isso de forma compartilhada com o poder público.
A isso se chama poder de Estado, tomar decisões sobre um bem público e que devem ser cumpridas. O comitê passa, então, a definir as regras a serem seguidas com relação ao uso das águas. Aos órgãos gestores de recursos hídricos cabe fazer que essas regras sejam postas em prática por meio do seu poder de regulação.

ESPAÇO PARA SOLUÇÃO DE CONFLITOS E DE
ESTABELECIMENTO DE REGRAS PARA O USO DA ÁGUA
Uma das atribuições mais relevantes dos comitês é estabelecer um conjunto de mecanismos e de regras, decididas coletivamente, de forma que os diferentes interesses sobre os usos da água na bacia sejam discutidos e negociados democraticamente em ambiente público, com transparência no processo decisório, buscando prevenir e dirimir conflitos. Essas regras devem ser avaliadas sob o aspecto da bacia hidrográfica, depois de considerados os aspectos técnicos e os diferentes pontos de vista dos membros do comitê.

QUAL O PODER DE DECISÃO DO COMITÊ DE BACIA?
A principal decisão a ser tomada pelo comitê é a aprovação do Plano de Recursos Hídricos da Bacia. Esse instrumento constitui-se no plano diretor para os usos da água. No plano devem ser definidas metas de racionalização de uso para aumento de quantidade e melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis, bem como os programas e os projetos destinados ao atendimento dessas metas. No plano são definidas também as prioridades para outorga de direito de uso da água, estabelecidas as condições de operação dos reservatórios, além de orientações e regras a serem implementadas pelo órgão gestor de recursos hídricos na concessão das outorgas. No plano também estarão as diretrizes e os critérios para cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Enfim, o plano, como principal instrumento de deliberação do comitê, reúne as informações estratégicas para gestão das águas na respectiva bacia hidrográfica.

ATRIBUIÇÕES DOS COMITÊS
A inclusão dos comitês, como instâncias de gestão de recursos hídricos de uma bacia hidrográfica, se deu em um contexto de mudanças estruturais do Estado nas décadas de 1980 e 1990. Foi resultado, dentre outros fatores relevantes, do processo de mobilização social incrementado com a redemocratização do País.
A participação social e a representação no âmbito do comitê permitem a negociação sobre o uso da água em uma esfera pública até então inédita na gestão das águas no País. O comitê tem poder deliberativo e deve ser composto por representantes da sociedade civil e dos usuários, além do poder público. Trata-se de uma experiência nova, com forte conotação técnica e política, cujas premissas e competências serão objeto de apreciação mais detalhada (quadro 1).
A principal competência de um comitê é a de aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica. Esse plano, cujo conteúdo mínimo encontra-se definido no artigo 7º da Lei nº 9.433/1997 e regulamentado pela Resolução nº 17 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos  (CNRH), de 2001, constitui-se no instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos cuja prerrogativa legal é exclusiva do comitê. O plano funciona como instrumento que orienta os usos das águas da bacia. É construído a partir de bases técnicas que avaliam:
• condições de disponibilidades e de demandas de água;
• repercussões das demais políticas públicas sobre as águas;
• prospecção futura dos usos;
• propostas para criação de áreas sujeitas a restrições de uso, com vistas à proteção dos recursos hídricos (áreas de recargas de aquíferos e de nascentes, por exemplo); e
• programas e projetos a serem implementados para solução física e para ações reguladoras que garantam o cenário pretendido pelo comitê para determinada bacia.
Destaque deve ser dado aos aspectos técnicos que a legislação definiu para o plano, o qual, aprovado, estabelece condições a serem garantidas para as atividades dos usuários pelos órgãos responsáveis pela regulação do uso das águas. A legislação determina que o plano deve:
• apresentar as metas de racionalização de uso, o aumento de quantidade e a melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis;
• estabelecer as condições de operação dos reservatórios; e
• definir as prioridades de uso para efeito de concessão da outorga de direito de uso de recursos hídricos.
As regras definidas no plano devem orientar a atuação da regulação quando do estabelecimento dos critérios de outorga a serem adotados pelos órgãos gestores com relação aos diversos usos.
É dever do comitê, além de aprovar o plano, acompanhar sua implementação para garantir a efetivação das metas nele estabelecidas, bem como a realização dos programas nele priorizados. Para tanto, é necessária a existência de mecanismos que possibilitem tais atividades.
As agências de água e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos são alguns dos meios com que devem contar os comitês no acompanhamento e na implementação do plano. Por falar em cobrança, a aplicação dos recursos arrecadados é definida pelo comitê, com base nas orientações do plano, para utilização desses recursos.
Observa-se que os usos da água são muitas vezes concorrentes e que a água que está reservada para a agricultura pode comprometer a navegação, ou mesmo a geração de energia e que o somatório desses usos pode ameaçar a manutenção do ecossistema aquático. Para prevenir conflitos, o comitê deve promover o debate e articular a atuação das entidades envolvidas.
Caso os conflitos não consigam ser evitados, é também o comitê que atua como árbitro, em uma primeira instância administrativa[i]. Essa arbitragem se dá de forma participativa.
Quem decide sobre o conflito é o “coletivo”, conforme as regras definidas no regimento interno do comitê. Portanto, instaurado um conflito, auxiliado por estudos técnicos sobre a questão, cabe ao plenário do comitê definir a prioridade do uso e a solução da contenda. Ou seja, partindo de uma base técnica de avaliação do conflito, é realizada a avaliação política pelo comitê. De forma pública, transparente e democrática.
Essas decisões, no entanto, podem ser revistas pelo próprio comitê, ou recorrendo-se aos conselhos de recursos hídricos, em última instância administrativa, conforme o domínio das águas em disputa.
Se cabe ao comitê a arbitragem, o que compete aos órgãos gestores de recursos hídricos?
A regulação, o poder de polícia, a implementação da decisão: eis sua função objetiva no cumprimento da decisão pública. Cabe ressaltar que, como o alicerce da Política Nacional de Recursos Hídricos é um sistema de gerenciamento – o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) –, é necessário que os órgãos gestores de recursos hídricos estejam bem preparados para exercer não só as funções há pouco descritas, mas todas aquelas que lhes cabem. Para que as decisões dos comitês sejam efetivas e o Singreh funcione de forma plena, é imprescindível que os órgãos gestores estejam adequadamente estruturados.
Outras atribuições relevantes dos comitês, porém, que necessitam da aprovação dos conselhos de recursos hídricos competentes, são: o estabelecimento de propostas sobre usos não outorgáveis ou de pouca expressão; e a proposição de alternativa de enquadramento dos corpos d’água, que nada mais é do que o estabelecimento de meta ou o objetivo de qualidade de água (classe) a ser alcançado ou mantido em um segmento de corpo d’água, de acordo com os usos preponderantes pretendidos, ao longo do tempo.
Além dessas atribuições, o comitê deve ser o fórum em que se promova o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e a articulação das entidades intervenientes. Essa atribuição será cada vez mais importante com a melhoria da representatividade e da legitimidade de seus representantes. Esse é um desafio a ser superado a cada processo eleitoral do comitê.
O quadro 1, abaixo, apresenta as atribuições dos comitês de bacia previstas em lei.




Quem apoia a construção de propostas a serem debatidas nos comitês?
Apesar de serem entes de Estado, os comitês de bacia não possuem personalidade jurídica, ou seja, não têm Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), pois suas competências são de cunho deliberativo, propositivo e consultivo, e não executivo. Para tanto, a legislação criou a figura da Agência de Água, ou Agência de Bacia[ii], para dar o suporte técnico ao comitê exercendo, entre outras, a função de secretaria-executiva. No entanto, essa mesma legislação estabeleceu que a agência somente será criada quando houver viabilidade financeira de suas atividades assegurada pela cobrança pelo uso das águas em sua área de atuação. A cobrança somente tem sido implantada após muito debate na bacia e em poucas delas se efetivou.
Em função da inexistência de agências de água (a quem são remetidas, dentre outras, as competências pela apresentação de propostas técnicas), cria-se uma dificuldade operacional aos comitês: quem fará as propostas técnicas para embasar essas decisões? Sem estudos técnicos, como os comitês poderão cumprir suas atribuições?
Ou seja, percebe-se aqui uma dificuldade inicial para implantação do Singreh: não se avança na gestão porque não há estudos técnicos; não se têm estudos técnicos porque não se avança na implementação dos instrumentos de gestão. Esse problema tem sido superado, em parte, quando os órgãos gestores de recursos hídricos disponibilizam os estudos. O fato é que a implantação da cobrança pelo uso da água e a instalação da Agência de Água colaboram fortemente para que o comitê exercite suas atribuições de forma plena.
Isso quer dizer que sem sua Agência de Água o comitê não pode exercer suas competências? Absolutamente. Como foi dito, a gestão de recursos hídricos no Brasil é baseada em um sistema em que todos os entes que o compõem devem atuar em cooperação, de forma coordenada e articulada. Cabe aos órgãos gestores, como organizações responsáveis pela implementação da política de recursos hídricos, apoiar os comitês no exercício de suas atribuições, mesmo na inviabilidade da criação das agências de água – fato que pode estar presente em grande número de bacias brasileiras.


[i] Primeira Instância Administrativa: O comitê é o primeiro órgão administrativo a ser acionado em situação de conflito pelo uso da água. Caso o conflito não seja dirimido pelo comitê ou caso a decisão não atenda a alguma das partes envolvidas, cabe recurso ao Conselho de Recursos Hídricos pertinente, como segunda instância administrativa, hierarquicamente superior ao comitê. Há sempre a possibilidade de se recorrer a instâncias judiciais, lembrando que essas têm trâmite diferenciado das instâncias administrativas.

[ii] A Lei nº 9.433/97 introduziu a figura das Agências de Água que, na maioria das legislações estaduais de recursos hídricos, são denominadas como Agências de Bacia. Em ambos os casos (União e estados), as agências têm competências bastante semelhantes, de caráter eminentemente técnico e executivo.

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