Disponibilidade de água doce ganha destaque entre
riscos globais
Nos países de cor verde, o uso de água para a produção de bens de
exportação ultrapassa o da água “embutida” nos produtos importados (exportação
virtual líquida de água). Nos países que vão do amarelo ao vermelho, o
contrário é verdadeiro (importação virtual líquida de água). A espessura das
setas representa a quantidade comparativa de água comercializada.
A crescente escassez de água doce resultante do aumento da demanda e das
mudanças climáticas está sendo considerada cada vez mais um grande risco para a
economia global. A conscientização dos consumidores, iniciativas do setor
privado, regulamentações governamentais e investimentos direcionados são
urgentemente necessários para avançar rumo ao uso sustentável da água.
Recentemente, o Fórum Econômico Mundial listou a escassez de água como um
dos três riscos sistêmicos globais mais preocupantes. A avaliação está baseada
em uma ampla pesquisa global sobre a percepção de risco entre representantes de
empresas, do mundo acadêmico, da sociedade civil, de governos e organizações
internacionais1.
A escassez de água doce não se manifesta apenas através de lençóis freáticos
minguantes, fluxos fluviais reduzidos, lagos que encolhem e águas altamente
poluídas, mas também se reflete no aumento dos custos de abastecimento e
tratamento, fornecimentos intermitentes e conflitos por causa de água. No
futuro, essa escassez aumentará em virtude de vários fatores: crescimento
populacional e econômico; demandas crescentes de produtos de origem animal e
biocombustíveis; e mudanças climáticas2.
Melhorias na eficiência do uso da água podem desacelerar o aumento de sua
demanda, mas particularmente na agricultura irrigada elas provavelmente serão
contrabalançadas por um aumento da produção. Da mesma forma, embora o
armazenamento de água e a infraestrutura de transferência melhorem a
disponibilidade, eles também permitem o contínuo crescimento da demanda. A
mudança climática provavelmente intensificará a magnitude e frequência de secas
e enchentes.
O esperado aumento na variabilidade climática agravará o problema da
escassez em períodos de estiagem, reduzindo a disponibilidade de água e
aumentando a demanda devido a temperaturas mais altas e a necessidade de
compensar a ausência de chuvas3. Mas o setor privado está se
conscientizando do problema da escassez de água doce.
O risco da água
A escassez e poluição da água constituem um risco físico para empresas ao
afetarem suas operações e canais de abastecimento4. Elas também
enfrentam a ameaça de regulamentos mais rigorosos. Mas que formas essas normas
poderão ter — por exemplo, preços mais altos da água, cotas reduzidas, licenças
de emissão mais severas ou a adoção mandatória de tecnologias para economizar
água — ainda não está claro.
Além disso, marcas enfrentam um risco de reputação, porque o público e a
mídia estão se conscientizando cada vez mais de que muitas empresas contribuem
para o uso insustentável da água5. Mesmo empresas que operam em
regiões onde há fartura de água podem ser vulneráveis à escassez, porque as
cadeias de abastecimento/distribuição da maioria delas se estendem ao redor do
mundo. Estima-se que 22% do consumo global de água e sua poluição estejam
ligados à produção de bens de exportação6.
Países como os Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, Índia e
China são grandes exportadores virtuais de água, porque eles usam
intensivamente recursos hídricos nacionais para produzir commodities de
exportação (ver o mapa). Comparativamente, nos países da Europa, do Norte da
África, Oriente Médio, México e Japão, predomina uma importação virtual de
água; ou seja, eles dependem de bens de importação produzidos com recursos hídricos
de outros lugares. O uso de água “embutido” nesses produtos muitas vezes não é
sustentável, porque muitas regiões exportadoras superexploram seus recursos.
Muitas empresas, especialmente multinacionais, já começaram a avaliar
seus riscos de água e no futuro próximo podemos esperar que um número crescente
delas desenvolva estratégias de respostas. Na melhor das hipóteses, porém, isso
só aliviará parcialmente o problema da escassez.
Uma perspectiva crítica é que o engajamento corporativo na questão da água
é uma tentativa cínica das empresas para estender seu controle sobre esse
recurso ou apenas um esforço para manter uma imagem favorável de marca7.
Um panorama mais otimista é que cada vez mais empresas estão genuinamente
preocupadas com a crescente escassez de água e estão procurando estratégias
mitigantes; ainda assim, é improvável que economias mudem estruturalmente sem
regulamentações governamentais.
A razão para isso é que a água é um bem público, vulnerável ao
comportamento oportunista, e tanto sua escassez como sua poluição permanecem
sem etiquetas de preço. Em muitos países o uso da água é subsidiado, seja
através de investimentos governamentais diretos em infraestruturas de
abastecimento ou indiretamente através de subsídios agrícolas, promoção de
culturas para gerar bioenergia ou subsídios de energia fóssil para bombear
água.
Gerenciamento de água
Administrar o risco de água geralmente é confundido com uma boa gestão da
água. O primeiro pode contribuir para o segundo, mas o gerenciamento implica em
mais que apenas administrar o risco de água. Ele inclui avaliação da
sustentabilidade de seu uso em toda a cadeia de valores, formulação do consumo
e metas de redução da poluição para as operações da empresa e sua cadeia de
abastecimento, implementação de um plano para atingir essas metas e
fornecimento adequado de informações sobre tudo isso.
Em reservatórios de coleta prioritários, é preciso adotar o exercício da
ação coletiva e o engajamento da comunidade8,9,10. Grandes bacias
fluviais prioritárias são, por exemplo, as dos rios Colorado e San Antonio, na
América do Norte; o lago Chade e as bacias dos rios Limpopo e Orange, na
África; as bacias dos rios Jordão, Tigre, Eufrates, Indo, Ganges, Krishna,
Cauvery, Tarim, Amarelo e Yongding na Ásia e no Oriente Médio; e a bacia
Murray-Darling na Austrália11.
Para a maioria das empresas rumar para uma cadeia de abastecimento
sustentável é um desafio muito maior que adotar estratégias ecologicamente
corretas em suas próprias operações, porque a pegada hídrica da cadeia de
produção muitas vezes é até 100 vezes maior que a pegada operacional, podendo
ser influenciada apenas indiretamente.
Metas comuns de redução na indústria de bebidas, como passar de 2 para
1,5 litro de consumo de água na fábrica de envasamento por litro de bebida, têm
pouco efeito em larga escala, porque a pegada hídrica da cadeia de produção da
maioria das bebidas é da ordem de 100 litros de água por litro de bebida, ou
até mais12.
Empresas deveriam se esforçar para alcançar uma pegada hídrica zero em
operações industriais, o que é viável através da eliminação das perdas por
evaporação, da reciclagem completa da água e da recuperação dos produtos
químicos e do calor de fluxos de água utilizada.
O problema não é o uso da água, mas o fato de que ela não ser totalmente
devolvida ao meio ambiente ou não ser devolvida limpa. A pegada hídrica mede
exatamente isso: o uso consumista e o volume de água poluída.
Como as últimas etapas rumo a uma pegada hídrica zero podem exigir mais
energia, o desafio será encontrar um equilíbrio entre a redução das pegadas
hídrica e de carbono. Além disso, empresas deveriam fixar metas de redução das
pegadas hídricas de suas cadeias de abastecimento, especialmente em áreas de
grande escassez e em casos de baixa produtividade de água.
Na agricultura e na mineração, alcançar uma pegada hídrica zero
geralmente será impossível, mas em muitos casos o consumo e a poluição de água
por unidade de produção poderiam ser fácil e substancialmente reduzidos13.
Informação e transparência
O crescente interesse em como empresas se associam ao uso insustentável
da água exige maior transparência quanto ao seu consumo e poluição. Essa
abertura é necessária em níveis diferentes: o da empresa, do produto e da
instalação.
Impulsionadas por organizações ambientais e pela comunidade de
investimentos, as empresas estão sendo cada vez mais pressionadas a revelar
dados relevantes sobre como elas se relacionam com os riscos hídricos14.
Ao mesmo tempo, há uma crescente demanda por transparência sobre os
produtos através de rótulos e certificados. Apesar da existência de uma
infinidade de selos ligados à sustentabilidade ambiental, nenhum deles inclui
critérios sobre a utilização sustentável de água.
Por fim, existe um movimento para desenvolver sistemas de princípios e
certificados para um local sustentável ou o gerenciamento de uma instalação,
como as iniciativas da Parceria Hídrica Europeia e da Aliança paraAdministração de Água (AWS, na sigla em inglês). Mas, apesar do progresso na
conscientização, até agora praticamente nenhuma empresa do mundo fornece
informações sobre o consumo e a poluição de água em sua cadeia de
abastecimento, nem revela dados sobre a sustentabilidade da pegada hídrica de
seus produtos.
Existe muita confusão sobre o que precisa ser medido e informado.
Tradicionalmente, as empresas têm se concentrado no monitoramento das
retiradas brutas de água e no cumprimento dos padrões legais. No entanto, a
retirada líquida (a parte da retirada bruta que não retorna ao local de onde
foi tirada, muitas vezes denominada “uso consumista de água” ou “pegada de água
azul”) é mais relevante que a retirada bruta.
Além disso, atender aos padrões de qualidade de águas residuais não basta
para descartar a contribuição da empresa para a poluição da água. Quanto aos
padrões de terminologia e cálculos, a Water Footprint Network, uma rede global
de universidades, organizações não-governamentais, empresas, investidores e
organizações internacionais, desenvolveu o padrão da pegada hídrica global15.
A Organização Internacional de Padronização (ISO, na sigla em inglês)
está desenvolvendo um padrão de relatórios com base na avaliação do ciclo de
vida16. Os dois critérios enfatizam a necessidade de incorporar a
variabilidade temporal e espacial em pegadas hídricas e a necessidade de
considerá-las no contexto da escassez e produtividade local da água.
Na prática, as empresas enfrentam um desafio enorme em rastrear sua
cadeia de abastecimento. Empresas do setor de vestuário, por exemplo,
geralmente têm pouca noção de onde seu algodão é cultivado ou processado, mas
as duas atividades são notórias consumidoras e poluidoras de água. É difícil
ver um progresso rápido no campo das informações sobre a cadeia de
abastecimento se os governos não forçarem as empresas a fazer isso.
Apesar dos esforços positivos empreendidos por várias empresas, é
improvável que o setor empresarial como um todo se autorregule o suficiente por
conta própria. Há uma necessidade urgente de regulamentação governamental e
cooperação internacional.
Governos deveriam desenvolver limites mensais de pegadas hídricas para
todas as bacias fluviais do mundo a fim de garantir o uso sustentável da água
dentro de cada uma dessas áreas12. Um limite de pegada hídrica
determina um volume máximo de água que pode ser destinado para diferentes fins
competitivos, respondendo pela necessidade de água ambiental e variabilidade
climática. Esse limite também estabelece a poluição máxima de água, dada a
capacidade de assimilação da bacia. Em algumas delas esses limites
provavelmente serão reduzidos com o tempo se a mudança climática acarretar uma
diminuição da disponibilidade de água.
O volume total destinado a usuários específicos por meio de licenças
hídricas deveriam permanecer abaixo do nível máximo sustentável. Além disso, ao
concederem certas licenças, os governos deveriam levar em conta o que significa
uso razoável de água.
Precisamos estabelecer padrões de medição de pegadas hídricas para
produtos intensivos em água, como alimentos e bebidas, algodão, flores e
biocombustíveis.
O padrão de referência para um produto dependerá do consumo máximo
razoável de água em cada etapa de sua linha de produção, com base na melhor
tecnologia e prática disponíveis. Desse modo, produtores que utilizam água,
governos que alocam cotas de água e fabricantes, varejistas e consumidores
finais na extremidade inferior da cadeia de abastecimento compartilham
informações sobre o que são “pegadas hídricas razoáveis” para várias etapas do
processo de produção e os produtos finais. Por último, os usuários deveriam
pagar por sua poluição e desperdício de água, com um preço diferenciado no
tempo e no espaço baseado na vulnerabilidade e escassez da água.
Futuros desenvolvimentos
A tecnologia necessária para utilizar os recursos hídricos de forma mais
eficiente está disponível e os custos envolvidos não são proibitivos na
macroescala. Um estudo17 estimou que até 2030 o investimento de
capital incremental global necessário para fechar a lacuna da disponibilidade
de recursos hídricos seria inferior a 0,1% do atual produto bruto mundial.
O desafio é criar incentivos para os investimentos necessários,
particularmente para aumentar o rendimento de culturas alimentadas por chuvas e
a produtividade da água na agricultura irrigada.
A combinação de desafios e o aprimoramento da eco-eficiência deverão
definir limites para o contínuo aumento da demanda de água para produzir carne
e biocombustíveis, e se adaptar aos padrões mutantes de escassez de água.
Outro estudo18 constatou que mudanças induzidas pelo clima na
evaporação, precipitação e no escoamento superficial resultarão em um aumento
de 40% no número de pessoas que vivem em condições de absoluta escassez de água
(com uma disponibilidade inferior a 500 m3/ano).
Regiões pobres em água, como o oeste dos Estados Unidos, o noroeste da
Índia, norte da China e sudeste da Austrália, ainda aplicam grandes volumes de
água para produzir commodities de exportação, enquanto o norte da Europa, rico
em água, importa muitos bens de consumo intensivos em água6.
Padrões variáveis de disponibilidade de água influenciarão os futuros
modelos espaciais de produção e comércio de alimentos, rações animais e
biocombustíveis, e criarão novas dependências geográficas de recursos hídricos.
Biografia do autor
Arjen Y. Hoekstra é professor de gerenciamento de água no Centro Hídrico
de Twente, Universidade de Twente, Caixa Postal 217, 7500 AE Enschede, Holanda.
*e-mail: a.y.hoekstra at utwente.nl
Este artigo foi reproduzido com permissão da Nature Climate Change. Ele
foi publicado originalmente em 25 de abril de 2014. Republicado no Brasil por Blog Era da Água .
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Por
Arjen Y. Hoekstra e Nature Climate Change
Fonte:
Scientific American | Abril - 2014
Atenção: Os links deste artigo foram inseridos pelo blog.
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